Dá pra acreditar que ainda existem homens nos dizendo qual é o nosso “papel” em casa? Limpar, cuidar dos filhos, ser responsável pelas atividades domésticas… é INACREDITÁVEL, mas esse pensamento se propaga e tem se perpetuado ainda, mesmo entre os jovens.
Nesse momento de isolamento social vemos mulheres sem dormir, trabalhando o triplo ou mais para dar conta de suas atividades: empregos, das atividades da casa, atividades escolares dos filhos, além de cuidarem de si mesmas, se sobrar tempo é claro.
Todo dia é uma pequena batalha para explicar pelo milionésima vez que quando nascemos o único papel que nos deram foi a certidão de nascimento e nela não consta obrigações por ser mulher.
Dessa vez eu trago uma resenha mais longa, pois o livro Mística Feminina, de Betty Friedan traz muitas páginas com informações importantíssimas que não apenas nos contextualizam sobre um momento específico na história das mulheres americanas, mas que nos devolvem imediatamente aos dilemas diários por ser mulher em nossa sociedade atual.
Este livro é pra todo mundo
Em poucas linhas, este livro trata da denúncia a manipulação feita às mulheres americanas em uma sociedade de consumo, para que se dê vazão aos produtos fabricados em série pelas indústrias em um momento de pleno desenvolvimento econômico dos Estados Unidos.
Estamos falando aqui do surgimento da obsolecência programada que incentivava o consumo mais rápido dos produtos que por sua vez teriam que apresentar uma menor durabilidade.
Estamos em 1950, caminhando para meados de 1960…
Já no início, temos comentários anteriores ao préfacio da autora, feitos por Rose Marie Muraro, escritora, femininista, editora, uma das mais brilhantes intelectuais que lutou pelas causas feministas. Recebeu inúmeros prêmios e reconhecimento por suas ações e publicações, até que foi nomeada Matrona do Feminismo Brasileiro pela Lei 11.261 de 30 de dezembro de 2005.
A Rose contextualiza a época e os principais acontecimentos econômicos para nos ajudar com a leitura. Em meio a toda a produtividade intensa da indústria norte-americana, a mulher se destaca como a grande consumidora e portanto o alvo principal das campanhas de marketing e propaganda.
A ideia de obter status social está associada a ideia da mulher (dona do lar) consumir continuamente todo tipo de produtos que tornem sua vida mais ágil e moderna.
“Habilmente os donos do poder econômico convencem-na a voltar em massa para casa. Nas décadas anteriores tinha havido um movimento de libertação feminino que abriu às mulheres as portas da participação social e econômica na construção da Grande Sociedade.
Agora, por necessidades também econômicas, mas não mais das próprias mulheres ou da sociedade e sim da grande indústria, eis que a sua atuação fora de casa é desvalorizada e revalorizada ao máximo a sua feminilidade, a sua maternidade, como se participar da construção da sociedade fôsse incompatível com a sua condição de mulher”. (p. 9).
Aqui vai uma dica de filme para te ajudar a entender o contexto: O sorriso de Monaliza.
A personagem Elizabeth “Betty” Warren está com o marido posando para uma revista feminina da década de 1950.
Se a mulher não trabalhasse fora do lar poderia dedicar mais tempo ao consumo e assim se deu por muito tempo, até que Betty Friedman passou a ouvir inúmeras mulheres e coletar depoimentos para que pudesse entender os diversos problemas psicológicos, emocionais, sociais e culturais que estavam ocorrendo e recebendo o cunho de "problema sem nome".
Com este livro, a mulher norte-americana pôde ouvir sua própria voz que antes era abafada em pensamentos solitários, passou a entender que sofria uma manipulação e que era isso o que havia de errado e que não conseguiam explicar a si mesmas ou aos médicos.
Somos valorizadas hoje por sermos sobrecarregadas
Por volta da década de 1950, mulheres por toda a parte relatavam sentir uma angústia estranha: presas em suas vidas domésticas atribuladas, não podiam usar o conhecimento que obtinham na faculdade, eram ensinadas a agarrar e conservar seus maridos, a serem boas mães, a terem vários filhos, a usarem sutiens com enchimentos, a fazerem dietas de emagrecimento, a desejarem uma cozinha dos sonhos com todo tipo de eletrodoméstico que seria possível de ser inventado, a preparar jantares de negócios para o marido…
“O problema é ser sempre a mamãe dos filhos, ou a senhora do ministro, nunca eu própria”. (p. 27)
Betty alerta para o fato de que as mulheres estavam aprisionadas em casa a partir das contínuas e absurdas exigências feitas ao seu tempo, no entanto, havia escolha. Era difícil de interpretar, de entender, e muito mais ainda, de romper com isso.
As mulheres que frequentavam a universidade, recebiam uma educação de grande qualidade, no entanto dentro da própria universidade é que aprendiam a encontrar depressa um marido e até realizavam uma disciplina para aprender a ser esposa. No filme O Sorriso de Monaliza, vocês poderão entender melhor sobre isso.
Neste livro, você vai entender como ela identificou os problemas emocionais e a insatisfação das mulheres, tanto na América quanto na Europa, como os críticos (homens) tratavam rapidamente de atenuar as questões a partir de medicações e conclusões distorcidas até ao ponto de levar a mulher a se sentir ingrata pela vida que tinha.
Também estão presentes na obra o movimento anterior de libertação da mulher e a gradativa decadência do pensamento livre da mulher moderna que podia estudar e trabalhar, ter sonhos próprios, além do casamento e da maternidade. Um dos pontos mais interessantes do livro é compreender o papel dos canais de comunicação diante de todo esse processo.
Betty fez um levamentamento – DIGNO DE UMA PESSOA BIBLIOTECÁRIA, diga-se de passagem – sobre todas as histórias publicadas em revistas femininas, livros de ficção e romance endereçados às mulheres na época, comprovando o reforço de uma imagem, um perfil de mulher aceitável e outro de mulher nociva, além de uma receita pronta na qual a personagem feminina que fosse livre sempre terminava sozinha, ou era homossexual, ou acabava por arrepender-se de abster-se do casamento e da maternidade. A ideia de heroína doméstica, de mulher guerreira, te faz pensar em como somos valorizadas hoje por sermos sobrecarregadas…
Isso está certo? Não, não está.
As consequências
É claro que uma heroína doméstica não participava da vida e das decisões políticas de sua sociedade. Não é a toa que hoje vivemos consequências das decisões tomadas por homens em praticamente todas as questões, e claro que incluindo também questões muito mais antigas, ações e decisões de décadas e décadas passadas.
No livro você poderá conhecer a história da autora, sua luta diante de jornalistas hostis e todo o processo de construção deste livro, enquanto se desconstruía como heroína do lar para voltar a ser ela mesma. Aqui aprende-se sobre o surgimento do feminismo e dos primeiros movimentos da Mulher. Há também dois capítulos inteiros dedicados ao sexo e sua relação com o comércio.
Esta é uma obra para se ter em casa, sempre à mão, para releitura, consulta e para que se possa ensinar os desavisados, aqueles que possam repetir de forma vazia os discursos ouvidos por gerações masculinas passadas.
Eu sei que destaquei trechos no livro inteiro pois é impossível não fazê-lo rs.
Eu vou destacar aqui também o sumário, pois como bibliotecária (eu acho que seja por isso também) eu admiro sumários bem estruturados e objetivos que orientem a leitura de forma bastante prática.
Pelo sumário você tem uma linha precisa do roteiro deste livro, vamos ver:
Comentários de Rose Marie Muraro
Prefácio da autora
O problema sem nome
A heroina doméstica
A crise de identidade da mulher
A vibrante jornada
O solipsismo sexual de Sigmund Freud
O congelamento funcional – o protesto feminino e Margaret Mead
A educação orientada para o sexo
A escolha errônea
Sexo e comércio
Expande-se a função doméstica para encher o tempo livre
Em busca do sexo
Crescente desumanização: um confortável campo de concentração
A personalidade desperdiçada
Um novo plano de vida para a mulher
A obra da Betty fotografa e analisa um momento singular que não está tão distante do que vivemos hoje. Ainda ouvimos absurdos por meio de falas masculinas e muitas de nós repetem essas falas, umas para as outras, sem reflexão.
Você é capaz de perceber essas falas?
Capa do livro Mistica Feminina
Título: Mística Feminina
Autora: Betty Friedan
Editora: Vozes
Ano desta edição: 1971
Ano de Publicação da primeira edição: 1963
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Nunca pensei no feminismo ligado a sociedade do consumo... Muito boa a resenha, despertou minha vontade de ler o livro!